terça-feira, 28 de setembro de 2010

Um diário

O meu filho recebeu de presente um caderno com muitas páginas. Foi o pai que lhe deu. Eu também recebi um. Gosto de receber cadernos. O puto também gostou. Passados uns dias veio ter comigo e disse: "estou a usar o caderno do pai como o meu caderno especial, para escrever as minhas coisas".
Ele sabe que isso me deixa feliz. Porque há anos que insisto com ele para que deixe registados os seus pensamentos, os poemas, os raps, os disparates maravilhosos que vive a espalhar pelos cantos e depois se dispersam na espiral do esquecimento. O meu filho é igual a mim. O meu filho é muito melhor do que eu. Mas partilha comigo o amor das palavras. Gosta de brincar com elas, experimentá-las, desafiar o(s) seu(s) sentido(s). Gosta delas todas, das novas e das antigas, das formas arrevezadas, engraçadas, trágicas ou líricas de dizer. Mas tem tendência a deixar fugir as formulações brilhantes que parecem brotar incessantemente do seu interior como se de um campo fértil se tratasse. Como se o habitasse um espírito feito de vegetação luxuriante. Palavras e mais palavras.
Palavras e mais palavras nascendo e crescendo como hera, como folhas, como ramagens, como árvores trepadeiras, frondosas, ocupando todo o espaço... mas as palavras têm de ser escritas. Pois se não fixamos as suas combinações nessa terra nutritiva que é o papel, elas crescem desordenadamente como aquelas árvores que estão no quintal abandonado ali atrás do meu e que ocupam o espaço todo e nos tapam o sol e nos dão cabo da roupa e nos querem entrar pela janela dentro e nos encham tudo de folhas e dão connosco em loucos...
A minha filha também vai pelo mesmo caminho. Ou talvez não. Porque ela gosta é de letras. Dos 'A', dos 'R', dos 'S'. E de números. E de carros. E de animais. Mas gosta de letras. De as escrever, de as desenhar. De as descobrir nas palavras. Palavras. Palavras e mais palavras.
Palavras. Letras. Palavras. Não sei com o que se parece o código genético mas dá-me ideia que há de ser um conjunto de letras e números. Acho que aquele que carrego comigo e transmiti aos meus filhos é feito de palavras...

Mas então dizia eu que o meu filho recebeu do pai um caderno com muitas páginas. Gostei que o pai lhe oferecesse um caderno. Gostei que me oferecesse um a mim. Gosto de receber cadernos. O puto também gostou. Passados uns dias veio ter comigo e disse: "estou a usar o caderno do pai como o meu caderno especial, para escrever as minhas coisas". E eu: "Assim tipo um diário?". E ele: "Não, mãe, um caderno especial, para escrever as minhas coisas". E eu: "Mas isso é um diário". "Um diário é para escrever todos os dias e eu não escrevo todos os dias", ripostou. Disse-lhe que não era bem assim, que muitas vezes as pessoas tinham diários e não escreviam neles todos os dias. Mas acho que não fui honesta. Um diário, claro que sim. Um diário é para escrever todos os dias. E as coisas importantes têm de ser escritas.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Posta restante

Sonhei contigo. Estava-se bem. A nossa cumplicidade mantinha-se intacta e era intensa a emoção. Poderosa. Mas não tocaste no assunto. Ao fim de um tempo resolvi então questionar-te eu mesma sobre os motivos pelos quais resolveste desamigar-me sem dizer água vai. Foste evasivo, claro. Que mais poderia eu esperar? Evasão, aliás, será um termo adequado. Deserção. Engraçado, tudo terminologia bélica. Guerreira. Afinal talvez o caso tenho sido esse mesmo: uma batalha ganha de uma guerra perdida. Ou vice-versa, quem sabe? É tudo uma questão de ponto de vista...

Pensando bem, é - tem sido - essa a história da minha vida. Uma sucessão de batalhas muitas vezes aparentemente ganhas numa guerra à primeira vista perdida quando no final de contas, no balanço da coisa, quem sabe o saldo seja surpreendemente contrário. Díspar. Entre mortos e feridos... Tanta, tanta destruição... Quanta ruína será necessária para das cinzas edificar um mundo novo? Será a vida afinal uma constante aprendizagem da reconstrução face à catástrofe? Serão as nossas experiências, aquelas que sentimos como agradáveis e as outras, as que implicam dor e sofrimento - no fundo tantas e tantas vezes as duas faces de uma mesma moeda - uma acumulação de "mises-en-abîme", nas quais somos colocados por um artista brincalhão e algo sádico na ânsia de observar as nossas reacções nas situações-limite que se compraz a inventar?

Ontem, não sei se repetindo algo que ouviu nalgum filme ou leu nalgum livro, o puto dizia: "Sabes, cada vez mais sou levado a duvidar da nossa existência...". Sim, é verdade que quando estamos aqui, no meio de todo este silêncio, testemunhando a vida para além de nós, o prosseguir inexorável do mundo, a respiração subtil dos elementos, a textura indecifrável do ar, a nossa própria realidade parece-nos por momentos ilusória.

(esta posta estava guardada desde 28 de agosto)

quinta-feira, 2 de setembro de 2010