Há já uns anos que me apercebi disto. Janeiro custa a passar. A chuva. A escuridão. O frio. O desconforto. O desalento. A desmotivação. A espera. O recolhimento. Janeiro. Tempo de stand-by. Tempo de ficar e de morrer um pouco. Um pouco mais.
Dias obscuros, tempo triste, sinistro. Tempo de assistir à morte. Morte de gente nova, de gente velha, de gente assim-assim. De gente boa, de gente famosa, de gente assim-assim. A morte, essa, nunca é assim-assim. É sempre cruel, estúpida, inesperada. Mesmo quando surge na sequência de doença prolongada, esse eufemismo absurdo que eu julgava ter caído em desuso mas que ainda ontem ouvi na TV. Morte de heróis ou de monstros. A morte, diz-se, torna-nos todos iguais.
Morre o capitão de abril, morre de morte morrida, de doença prolongada e vejo-o, na peça da TV. Está ali, lado-a-lado com o meu tio, como se ainda cá estivessem, os dois. Ambos descem a avenida de liberdade ao peito e cravo na lapela. Ainda acreditam, parece. Ainda... Mas o capitão foi-se ontem e o meu tio há três anos. Três anos, já... E ele ali descendo a avenida de liberdade ao peito e cravo na lapela. Tão vivo...
Morre o cronista social, morre de morte matada, morte escancarada, dissecada ali, na TV, nos jornais, na internet. Morte sórdida, mentes sórdidas que vomitam podridão, ali, na TV, nos jornais, na internet. O cheiro a morte invade tudo, conspurca o eter, as fibras ópticas, entope os pensamentos, atravessa-se-me na garganta. Morte de acreditar. Os policiais que li são apenas o pálido reflexo da realidade possível.
Morre o artista, morre de morte morrida, de doença prolongada, vejo-o na TV como ontem o abracei, no palco onde cantava e dançava, como ontem me contava a sua vida, me desenhava no livro que era seu. E invade-me a lonjura do que não fiz, do que não disse, dos projectos que pensei mas não realizei, da conversa inacabada - não o são todas? Morre o artista e a arte morre com ele, morre a tela por começar, morrem os livros que não escrevi, os que que não li, o mundo por desbravar.
Morre um desconhecido, morre de morte suicidada. Atirou-se da janela, soube no outro dia. Um pai, um marido, um vizinho, nem o nome lhe cheguei a saber. Abre a janela de manhãzinha, antes de sair para o trabalho. Depois de amanhã será janeiro, o mês mais longo do ano. Os filhos estão de férias, ainda dormem no quarto. Despede-se e sai. Estatela-se no chão, lá em baixo, lá onde os filhos fazem cavalinhos nas suas bicicletas, todos os dias, com os amigos, os filhos dos vizinhos. Contrariado, um polícia entra no elevador, carrega no botão do nono andar. Leva na mão o telemóvel da vítima, vai devolvê-lo à viúva. Vai zangado, que já devia estar de folga. No quarto das crianças um recado do pai: "Quero que saibam que nunca vos esquecerei."
Dias obscuros, tempo triste, sinistro. Tempo de assistir à morte. Morte de gente nova, de gente velha, de gente assim-assim. De gente boa, de gente famosa, de gente assim-assim. A morte, essa, nunca é assim-assim. É sempre cruel, estúpida, inesperada. Mesmo quando surge na sequência de doença prolongada, esse eufemismo absurdo que eu julgava ter caído em desuso mas que ainda ontem ouvi na TV. Morte de heróis ou de monstros. A morte, diz-se, torna-nos todos iguais.
Morre o capitão de abril, morre de morte morrida, de doença prolongada e vejo-o, na peça da TV. Está ali, lado-a-lado com o meu tio, como se ainda cá estivessem, os dois. Ambos descem a avenida de liberdade ao peito e cravo na lapela. Ainda acreditam, parece. Ainda... Mas o capitão foi-se ontem e o meu tio há três anos. Três anos, já... E ele ali descendo a avenida de liberdade ao peito e cravo na lapela. Tão vivo...
Morre o cronista social, morre de morte matada, morte escancarada, dissecada ali, na TV, nos jornais, na internet. Morte sórdida, mentes sórdidas que vomitam podridão, ali, na TV, nos jornais, na internet. O cheiro a morte invade tudo, conspurca o eter, as fibras ópticas, entope os pensamentos, atravessa-se-me na garganta. Morte de acreditar. Os policiais que li são apenas o pálido reflexo da realidade possível.
Morre o artista, morre de morte morrida, de doença prolongada, vejo-o na TV como ontem o abracei, no palco onde cantava e dançava, como ontem me contava a sua vida, me desenhava no livro que era seu. E invade-me a lonjura do que não fiz, do que não disse, dos projectos que pensei mas não realizei, da conversa inacabada - não o são todas? Morre o artista e a arte morre com ele, morre a tela por começar, morrem os livros que não escrevi, os que que não li, o mundo por desbravar.
Morre um desconhecido, morre de morte suicidada. Atirou-se da janela, soube no outro dia. Um pai, um marido, um vizinho, nem o nome lhe cheguei a saber. Abre a janela de manhãzinha, antes de sair para o trabalho. Depois de amanhã será janeiro, o mês mais longo do ano. Os filhos estão de férias, ainda dormem no quarto. Despede-se e sai. Estatela-se no chão, lá em baixo, lá onde os filhos fazem cavalinhos nas suas bicicletas, todos os dias, com os amigos, os filhos dos vizinhos. Contrariado, um polícia entra no elevador, carrega no botão do nono andar. Leva na mão o telemóvel da vítima, vai devolvê-lo à viúva. Vai zangado, que já devia estar de folga. No quarto das crianças um recado do pai: "Quero que saibam que nunca vos esquecerei."
Este texto, calamity, este texto... que beleza e tristeza profunda...
ResponderEliminarforte e triste e bom de ler
ResponderEliminar:(
ResponderEliminarMas eu gosto de Janeiro, os meus filhos fazem anos!
Beijinhos.
Que arrepio! Que arrepio senti ao te ler...
ResponderEliminarDepois vem Fevereiro, e faltam-lhe dias... Menos esses para a morte também. No entanto se eles houvessem mais longe dela estaríamos, os que lá chegarmos. Já não sei se é Janeiro que é grande ou se é a vida que é curta.
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