quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O meu diário, post nº 2

Durante anos tive aquele diário. Guardava-o na gaveta da escrivaninha, no meio das cartas, postais e bilhetes de concertos. No meio das fotografias e bilhetes de cinema. No meio dos recortes de revistas e bilhetes de viagens. No meio das suas páginas também havia outras coisas. Coisas escritas e mais coisas que escrevia noutras páginas de outros cadernos e que ali colocava mais tarde. A chave, já não me lembro onde guardava. Talvez naquela caixinha com segredo, aquela, em forma de baú, de madeira revestida a pêlo de cavalo que a minha tia-avó me oferecera. Sim, provavelmente era ali que guardava a chave, na caixinha em forma de baú com segredo que a minha tia-avó me oferecera. Não consigo imaginar sítio melhor para guardar a chave de um diário, quando os diários tinham chave. Quando se escrevia neles com canetas de cores e se lhes punha perfume e se lhes colava fotografias e pontas de charro e embalagens de pastilhas elásticas.

Hoje os diários são virtuais e guardam-se com passwords. Neles colam-se links de tudo e mais alguma coisa ou não se cola nada. Já não são confidências que guardamos a sete chaves e não mostramos a ninguém, nem mesmo à nossa melhor amiga. São, pelo contrário, registos que queremos partilhar, porque hoje a partilha é palavra-chave embora às vezes me interrogue sobre que partilha é esta, se a solidão é cada vez mais ampla, neste mundo em que todos se vêem mas ninguém se parece tocar. E mesmo que esses diários sejam lidos - e muitos deles até comentados - por tanta gente, gente que a maior parte das vezes os autores desses diários nunca viram, gente que pode até passar por ali sem deixar qualquer rasto da sua passagem e que no entanto colheram parte de quem deixou ali a sua marca, o seu testemunho, muitos deles continuam a encerrar vidas inteiras, fechadas a sete chaves nas entrelinhas do não dito, do não escrito, como linhas perfumadas e coloridas de diário de adolescente fechado na gaveta da escrivaninha e de chave escondida na caixinha do segredo. Segredos que se guardam, segredos que se revelam. Segredos que deixam de o ser, que afinal nunca o foram. Como adolescente que esconde cigarros quando todos estão fartos de saber que fuma às escondidas.

Durante anos tive aquele diário. Nele registava o que achava que podia. O critério era instável, tal como eu. Por vezes quase me expunha. Outras deixava que a autocensura fizesse o seu papel. Sabia lá que isso existia. Sabia que não escrevia tudo o que pensava, isso sabia. Sabia que não me atrevia. Mesmo que o diário ficasse guardado na gaveta da escrivaninha, entre papéis e bilhetes, entre fotografias e recortes. Fechado com a chave que guardava já não me lembro onde mas acho que era na caixinha com segredo. Aquela, em forma de baú de madeira revestida a pêlo de cavalo que a minha tia-avó me oferecera. Não consigo imaginar sítio melhor para guardar um diário quando os diários tinham chave.

Durante anos tive aquele diário.

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